Era Paulo um Estoico?



Por: Diogo Vasconcellos


O estoicismo foi uma escola de filosofia helenística fundada em Atenas, por um certo Zenão de Cítio, no início do século III a.C, cuja alcunha foi extraída da palavra grega Στοά (Stoa), um Pórtico, um corredor coberto (comumente destinado ao uso público), no qual se reuniam seus seguidores e partir de onde o nome da filosofia se originou (1).

Para o estoico, é necessário que o indivíduo esteja em constante harmonia com a natureza para atingir a sabedoria. Assim sendo, para esse indivíduo, o único bem que existe é a retidão da vontade e o único mal, o vício. O que não é nem virtude nem vício é indiferente. Logo, a doença, a morte, a pobreza, a escravidão, por exemplo, não são males, portanto o sábio estoico não deve sofrer por eles. Em suma, seus pilares mais salientes, são a impassividade e imperturbabilidade (5), já que todas as coisas estão devidamente estabelecidas por uma espécie de de determinismo cósmico fatalista (6), a saber: pronoia e heimarmene[1].


Nas Palavras do próprio Zenão, em A República, recitado na obra de Umberto Cerroni (7):

A humanidade, já não dividida em nações,cidades, burgos, mas todos os homens considerados co-nacionais e concidadãos: uma só sociedade, como um só mundo; todos os povos constituem um só rebanho, que se apascenta no mesmo campo (...) isso é justo por natureza, não por convenção... O sumo bem consiste em viver conforme a natureza; e este, pois, uma só coisa com a vida virtuosa, dado que a natureza nos guia, ela mesma, para a virtude”.


Para fins de melhor compreensão acerca do pensamento estoico, se atente para a seguinte narrativa da vida do Antonino Imperador Marco Aurélio durante a guerra (21) marcomana[2]:

(...)não se tivesse rebelado Avídio Cássio no Oriente; e Avídio nomeou-se imperador, segundo dizem alguns, de acordo com o desejo de Faustina, que perdia a esperança em relação à saúde do marido(...)E, na verdade, Antonino não ficou muito perturbado com a defecção de Cássio, nem se enfureceu contra os seus entes queridos(...)Em Roma houve também distúrbios, como se, dada a ausência de Antonino, Cássio estivesse para chegar. Porém Cássio foi imediatamente morto e a sua cabeça trazida a Antonino. Marco, todavia, não ficou exultante com a morte de Cássio e mandou inumar a sua cabeça.


Esse trecho extraído do livro “História Augusta”, ilustra de forma bem clara o clássico exemplo da apatheia[3] estóica de libertar-se da raiva, da inveja e do ciúme (8).

Ora, devido a isso, os estoicos apresentaram sua filosofia como um modo de vida e pensavam que a melhor indicação da filosofia de um indivíduo não era, nas palavras de Sellars (9), o que uma pessoa diz mas como essa pessoa se comporta. Isto é, para viver uma boa vida, era preciso entender as regras da ordem natural, uma vez que ensinavam que tudo estava enraizado na natureza.


Lembrando a frase de Epíteto (um famoso estoico): “não deseja que o que acontece aconteça como queres, mas queiras que o que acontece aconteça como acontece e serás feliz”. Ou seja, a raiz da imperturbabilidade e impassividade do pensador estoico, está na ideia de que não há motivos para se demover emocionalmente por nada, já que absolutamente tudo que acontece (a dor, a perda, a morte etc.) está fatalisticamente determinado, o que torna todos os homens iguais (12). Logo, o desejo humano não poderia “lutar com a natureza”(Ibid., p.254)

A despeito de toda a elucidação acerca dessa linha filosófica, há uma flagrante e constante investida por parte da teologia não ortodoxa, também de filósofos da ala da esquerda política ou, até mesmo, por simpatizantes do movimento LGBT (2), arrematando que a teologia paulina teria sofrido influência do estoicismo (3). Embora criativa, é tão rasa e superficial, intelectualmente falando, como presumir que alguém é consagrado a alguma entidade do candomblé simplesmente por estar usando uma camisa vermelha num dia de sexta feira.

Tais linhas de raciocínio são indutivas e repletas de argumentos non sequitur[4] e reductio ad absurdum[5]Certamente são mais do que suficientes para converter a grande massa, esquecendo-se, contudo, das mentes pensantes que possuem todo o arcabouço intelectual para desarmá-la.

O argumento mais comum e clichê desses auto-declarados pensadores, baseia-se numa forçosa associação de conceitos criada entre os escritos do ex-fariseu e o pensamento estoico, sendo um deles a definição do termo “ordem natural”. Tal concepção é cara ao pensador estoico, contudo não é termo sequer cunhado por eles como logo adiante iremos temporizar. Afirmar que Paulo sofreu qualquer influência do estoicismo embasando-se em fraseologias e expressões idiomáticas é uma ideia no mínimo sofrível (para não dizer intelectualmente suspeita do ponto de vista da honestidade).

Caso, ainda assim, haja forçosa insistência em classificá-lo como estoico, todo o estoicismo de Paulo terminaria na altura do capítulo 7 devido ao pilar do pensamento estoico da Apatheia (do grego: πάθεια, onde:  a– “ausência” e  πάθος  pathos πάθος sofrimento ou paixão) que dentro da concepção do estoicismo, é um estado de espírito alcançado quando uma pessoa está livre de pertubações emocionais.  É notável, todavia, que não há qualquer espírito imperturbável em Paulo no que tange à sua teologia, muito pelo contrário. Esse é o homem que, ao enxergar seu conflito interno com sua natureza pecaminosa exclama “o bem que quero esse não faço, mas o mal que não quero esse faço. Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo dessa morte? “. Se isso é ser impassível e imperturbável, Paulo deveria ter sido o pior e mais fracassado dos estoicos…

Ademais, com frequência distorcem paulatinamente o conceito do “natural”, levando indutivamente o leitor por sendas que em nada se comunicam nem com o conceito estoico nem tampouco com o conceito cristão.

Até mesmo nas Leis de Platão, a pederastia carnal foi descrita como “contrária à natureza”, chegando o filósofo mesmo a sugerir que se uma lei proibindo tal comportamento fosse proposta, seria popular entre as cidades-Estado gregas – e que “provavelmente tal lei seria aprovada como correta.”(20)

Outrossim, o conceito de aceitação da natureza feita pelo pelos defensores dessa proposição também é bem limitado. O cristianismo não defende a ideia do “deixa a vida me levar”, endossando tudo que é instintivo e natural do homem como algo não combatível. Diferente disso somos exortados continuamente a lutarmos “contra a nossa própria natureza” (cf. Colossenses 3) continuamente. Haja vista sua corrupção e radical depravação (cf. Romanos 7).

Vários desses ainda afirmam que a visão das relações heterossexuais como sendo o viés natural é prototipamente grega, quando, na verdade essa visão de mundo, é tão antiga como o próprio mundo. Além de tratar-se de algo não apenas majoritariamente observável na natureza é também o princípio mantenedor do próprio Estado: o Estado apenas existe porque existem pessoas. Logo, o Estado só poderá continuar a existir se pessoas continuarem a existirem. E pessoas apenas continuarão a existir por meio da procriação, e esta, por sua vez, apenas é possível nas relações heterossexuais. Mesmo os gregos, em sua prática preferencialmente homo afetiva sabiam dessa máxima e, por saberem dessa verdade, a despeito de manterem a pederastia como prática comum, ainda adotavam como conceito de família o chamado “núcleo conservador”: Homem, mulher e prole. Ou seja, por lógica, o conceito de família precede o Estado. Ele (o Estado), não criou o conceito de família, apenas o absolveu.

Por fim, o argumento mais risível. Afirmam: Paulo seria um judeu grego. Curiosamente parecem desconhecer a origem farisaica do famoso evangelista. O teólogo alemão Gustav Adolf Deissmann (11), dizia que Paulo foi um “helenista para os helenistas porque a língua e a alma do Helenismo haviam chegado até ele com o ar de Tarso”. 

Ora... A despeito do renome do autor supracitado, essa assertiva é de um simplismo e reducionismo aterrador, pois o farisaísmo, seita judaica da qual Paulo foi correligionário, era o remanescente mais ortodoxo da fé judaica no chamado “período inter-bíblico[6]”. Tratava-se, justamente, de uma resistência à helenização do judaísmo imposta por Antíoco Epifânio[7] durante o regime do governo selêucida (12) fazendo um contra ponto com os saduceus. Esses últimos sim eram judeus helenizados. Já Paulo, chega ao ponto de se denominar “fariseu de fariseus”[8], o que desmonta a coerência argumentativa de Deissmann.

Todavia, a despeito do fato do pregador de Tarso valer-se, ao longo de sua vida discipular, de termos e expressões que remeta-nos a lembrar de linhas filosóficas alheias ao berço cristão, não é plausível, nem suficiente, valer-se dessa informação para concluir de maneira inequívoca que o apóstolo tivesse sua doutrinologia afetada, em sua essência, por outras matrizes. Esse ponto será uma das tratativas que procuraremos demonstrar de maneira homogênea nessa obra, tendo em vista a relativa diversidade de formas de estoicismo[9]Registre-se que estamos num contexto de um mundo romano helenizado, e certas idiossincrasias são perfeitamente normais em qualquer época.

O que é notável, por assim dizer, é uma admissão clara e inequívoca de que o próprio Paulo, em suas pregações públicas, usava os termos, expressões, histórias e poemas que eram comuns ao entendimento do ouvinte gentio, para efetivar a transmissão da mensagem evangelística. Note o texto de Atos 17.18-32:


E alguns dos filósofos epicureus e estoicos contendiam com ele, havendo quem perguntasse: Que quer dizer esse tagarela? E outros: Parece pregador de estranhos deuses; pois pregava a Jesus e a ressurreição. Então, tomando-o consigo, o levaram ao Areópago, dizendo: Poderemos saber que nova doutrina é essa que ensinas? Posto que nos trazes aos ouvidos coisas estranhas, queremos saber o que vem a ser isso. Pois todos os de Atenas e os estrangeiros residentes de outra coisa não cuidavam senão dizer ou ouvir as últimas novidades. Então, Paulo, levantando-se no meio do Areópago, disse: Senhores atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos; porque, passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem. Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos. Quando ouviram falar de ressurreição de mortos, uns escarneceram, e outros disseram: A respeito disso te ouviremos noutra ocasião (4).

Note que ao deparar-se com os estoicos, houve não finidade, mas estranheza da parte desses ouvintes. A pregação de Paulo não lhes soava familiar. 

Teimosamente, alguns ainda quereriam afirmar que, a essa altura, o evangelista ainda não tivera contato com a escola estoica. Tal pensamento não se sustenta, sendo, no minimo estranho, a um cidadão romano do "calibre" de Paulo como veremos adiante.


Paulo, teria vivido durante o período no qual predominava a chamada escola estoica imperial, cujo maior expoente é, ninguém menos, do que o já citado imperador Marco Aurélio. A essa altura o pensamento estoico era bem difundido e não é nada razoável conjecturar que o apóstolo educado em uma das capitais da educação do império (Tarso), não tivesse recebido qualquer instrução sobre o assunto. Certamente o tinha. E, não obstante, certamente o dominava.

Seu conhecimento fica patenteado ao longo das citações feitas por ele no próprio sermão. Aliás o único sermão evangelístico desprovido de citações dos textos sagrados: Paulo prega citando os poetas gregos, único conhecimento comum entre ele e os atenienses, realçando ainda mais sua erudição. Aliás, parece tratar-se de um estilo muito comum e inteligente de retórica usado pelo ex-fariseu na sua empreitada entre os não judeus ao tentar valer-se de termos familiares na exposição textual. Observe:

  • “Porque dele também somos geração” (Atos 17.28) – Essa frase de Paulo é inspirada no poeta Epiménides de Cnossos (século VI antes Cristo)[10].
  • “As más conversações corrompem os bons costumes” (I Coríntios 15.33) – Esse provérbio é retirado do poeta grego Menandro, do séc. Iv antes de Cristo[11].
  • “Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos” (Tito 1.12) – Citaçäo do poeta (ou profeta, como diz Paulo) cretense Epiménides de Cnossos (século VI antes de Cristo).[12]

Ora, tendo em vista todo esse histórico de citações, é bem improvável que o preletor em questão desconhecesse o ponto de vista do estoicos e epicureus que estavam presentes no areópago. Isso fica endossado, ainda que de forma paradoxal (como mostraremos adiante) historicamente pelo padre dominicano Jerome Murphy-o’Connor, quando diz (13):


Inevitavelmente, a “universidade” de Tarso se tornou uma fortaleza do estoicismo. Paulo dificilmente escaparia à sua influência, mesmo que não o estudasse. Há alguns traços de estoicismo em suas cartas. Os princípios básicos dessa filosofia eram simples. Tudo acontece segundo uma razão divina.


Também o escritor Joseph Holzer (14), afirma que “é bem possível que Paulo, quando menino, tenha cruzado muitas vezes com Atenodoro[13] nas ruas da sua cidade”. Mesmo sabendo que não há qualquer evidência histórica que tal “esbarrão” tenha ocorrido.

Uma vez provado que Paulo, era um exímio conhecedor da filosofia e da cultura grega, ter estudado em um dos maiores centros intelectuais de sua época e, não obstante, ser concidadão de Atenodoro, o estoico, é razoável presumir seu conhecimento de causa. Contudo, a afirmação feita acima acerca da paralaxe cognitiva do senhor o’Connor na citação de seu livro, dá-se pelo simples fato de que afirmar que nos escritos de Paulo de Tarso há “traços de estoicismo”, usando  para tanto a crítica textual como desculpa, é no mínimo um argumento pueril, quiçá intelectualmente suspeito do ponto de vista da honestidade. 

Não deixa de tratar-se de algo não pouco curioso, a seletividade e parcialidade da teologia não ortodoxa quanto a utilização dos textos sagrados. A mesma Bíblia que lhes serviu de fonte conclusiva para identificá-lo como “estoico”, não é levada em consideração quando textos como o de Atos, apontam que os estoicos lá presentes não concordavam com o conteúdo da pregação de Paulo. O texto informa que eles disputavam com Paulo chamando-o de paroleiro[14].

Com base no próprio texto, é possível, portanto, extrair vários pontos que elucidam o posicionamento de Paulo, sua doutrina e pregação. A saber:

  1. A exposição doutrinária de Paulo nao era familiar aos estoicos, portanto, diferente. (v. 18)
  2. A pregação de Paulo lhes era tão incomum e absurda, que o apóstolo foi apelidado ofensiva e pejorativamente de paroleiro. (v. 18)
  3. Sua doutrina foi chamada de estranha por causa da ideia de ressurreição (v. 19)
  4. Seu conteúdo expositivo era tão absurdamente diferente dos costumes dos atenienses que, movidos por curiosidade, inquiriram ainda mais o apóstolo sobre o assunto.
  5. Paulo, prega o evangelho sem citar nenhum texto das Escrituras, haja vista que, embora o judaísmo fosse amplamente difundido no mundo antigo, os helênicos não estavam familiarizados  lei de Moisés ou os profetas. Assim sendo, Paulo prega aos atenienses citando seus próprios poetas e conhecimento que lhes era comum.
  6. Quando se depararam com o cerne da mensagem do evangelho (a cruz e a ressurreição), imediatamente desprezaram o apóstolo.
  7. De todos os ouvintes imersos naquele contexto filosófico, apenas duas almas se salvaram.

Portanto, a questão é: Como o pensamento de Paulo pode ter resquícios dessa filosofia se, ao pregar na presença dos estoicos esses “estranharam”,  por assim dizer, o conteúdo de seu ensinamento? Há uma incoerência patente aqui.

O argumento mais comum e clichê baseia-se numa forçosa associação de conceitos criada entre os escritos do ex-fariseu, registrados especialmente nos dois primeiros capítulos da Catedral da Fé Cristã[15], e o pensamento estoico, sendo um deles a definição do termo “ordem natural”. Tal concepção é cara ao pensador estoico, contudo não é termo sequer cunhado por eles como logo adiante iremos temporizar. Afirmar que Paulo sofreu qualquer influência do estoicismo embasando-se em fraseologias e expressões idiomáticas é uma ideia bastante sofrível.

É necessário lembrar que os comentários do apóstolo nos capítulos 1 e 2 de sua carta são uma diatribe[16]. Um recurso de oratória didático e muito comum usado por vários políticos e oradores não estoicos. Registre-se que estamos num contexto de um mundo romano helenizado, e certas idiossincrasias são perfeitamente normais em qualquer época.

Se essa sagacidade sofista também fosse aplicada na hermenêutica, numa leitura simples dos três primeiros capítulos dessa carta seria fácil chegar a fatídica conclusão que o termo “uso natural” ou mesmo o termo “contrário à natureza” é aplicado por ele no que tange àquilo que já havia sido estabelecido na criação (cf. Os capítulos 5 a 7 por inteiro). Dessa forma, a exegese da mensagem não está na etimologia da palavra, mas sim no conceito nela imbuído. Essa prática de reaproveitamento de palavras com mudanças de conceitos é extremamente comum em toda teologia cristã neotestamentária. Exemplo disso é o próprio termo grego “logos“: enquanto no conceito neoplatônico, a temos com um significado, a visão estoica o conota de outra maneira e na teologia cristã a mesma palavra recebe outro sentido. Isso é uma mera questão de interpretação de texto simples, sem muita elaboração. E é por isso que teratologias argumentativas como as dos que tais coisas defendem são, no mínimo assustadoras.

Ademais, o conceito de aceitação da natureza explicitada no pensamento dessa linha filosófica é estranha ao pensamento cristão. O cristianismo não endossa a proposição estoica da apatheia. Diferente disso, há uma contínua exortação (registrada principalmente nos escritos paulinos) para que o crente lute “contra sua própria natureza” (Colossenses 3), haja vista o entendimento tácito de sua condição de corrupção e radical depravação

Não é possível, todavia, negar a citação de diversos pais da igreja que, aparentemente, poderiam endossar a absurda tese o alinhamento paulino com a filosofia estoica. Entretanto, o Lexicon – dicionário teológico enciclopédico, elucida o assunto de forma excepcional (15):

(...)Nota-se uma ampla convergência entre estoicos e cristaos na visao do homem como centro do cosmo. Relativamente ao matrimonio do qual se justifica somente a finalidade procriativa, o estoicismo parece ser ainda mais radical que a Bíblia: fica excluído o prazer isolado da procriação, uma vez que quaisquer tipos de paixão devem ser erradicadas. Todos esses conceitos presentes nos estoicos Epicteto, Lucano, Seneca aparecem nos cristãos Justino, Atenágoras, Minúcio Felix e Clemente de Alexandria até às notáveis confluencias observadas em João Crisóstomo. Frequentemente porém, as convergências são puramente exteriores; e mesmo quando Tertuliano fala, por exemplo, de “Seneca Saepe noster” (“Sêneca muits vezes é dos nossos”) ou Jerônimo diz que “Stoici nostro dogmati in plerisque concordant” (“Os estoicos estão de acordo com nossos dogmas em muitas coisas”), estão apenas indicando idênticas categorias de pensamento, e não certamente a equivalencia de conteúdos dourinais(...)


Os pais da igreja, logo, não ratificavam a doutrina estoica a qual, diga-se de passagem, não admitia um Deus pessoal, nem tampouco a ideia de ressureição que, nas palavras do próprio heterodoxo Rudolf Bultmann “é correto afirmar que sem a ressurreição a religião baseada nas tradições sobre o nazareno perde completamente seu sentido.” (16).

Logo, não há razão do ponto de vista da análise critica, em afirmar que o evangelista dos gentios, tivesse quaisquer simpatia ou afinidade com a filosofia estoica.

Talvez o maior erro dos “filósofos da conveniência”, seja tentar tornar simplista elementos que não são, se valendo para tanto de argumentos pseudo dedutivos como supracitados. É possível concluir, portanto, que a verdadeira erudição vai muito além de verborragias de citações descontextualizadas e indutivas.

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[1] Do grego πρωνοια (pronoia) e Ἑιμαρμενη (heimarmene). Provisão e destino.
[2] As guerras marcomanas ou marcomânicas foram uma série de conflitos militares que duraram mais de doze anos, nos quais o Império Romano enfrentou os marcomanos - uma tribo germânica que habitavam a região sul do rio Danúbio. (Historia Augusta, Marco Aurélio, 12, 92)
[3] Apatheia (do grego: ἀπάθεια, onde: ἀ a- "ausência" e πάθος - pathos πάθος "sofrimento" ou "paixão") de acordo com a filosofia estoica, é um estado de espírito alcançado quando uma pessoa está livre de pertubações emocionais. (apatia in Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2017. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/$apatia)
[4] Non sequitur é uma expressão latina (em português "não se segue") que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas. Em um non sequitur, a conclusão pode ser verdadeira ou falsa, mas o argumento é falacioso porque há falta de conexão entre a premissa inicial e a conclusão. (25)
[5] Latim para "redução ao absurdo", é um tipo de argumento lógico no qual alguém assume uma ou mais hipóteses e, a partir destas, deriva uma consequência absurda ou ridícula, e então conclui que a suposição original deve estar errada.
[6] Interbíblico é o nome que caracteriza o período de silêncio da voz profética entre o Velho e o Novo Testamento.
[7] Antíoco IV Epífânio foi um rei da dinastia Selêucida que governou a Síria entre 175 a.C. e 164 a.C. (12)
[8] Cf. Atos dos Apostolos 23.6 e Filipenses 3.5
[9] Estoicismo antigo (século III a.C), estoicismo médio (180 a.C.) e estoicismo imperial ou novo estoicismo (sec. I em diante)
[10] Essa citaçäo foi tirada de "Fenómenos", de Aratos, poeta ciliciano (século III antes de Cristo).
[11] Essa citação de Paulo foi extraída da comédia grega de Menandro, da obra “Thais”
[12] Essa citação de Paulo foi transcrita da obra “Cretica” de Epimênides.
[13] Atenodoro, cognominado Cordylion (em grego antigo: Αθηνόδωρος Κορδυλίων; nasceu na primeira metade do século I a.C.) foi um filósofo estoico, nascido em Tarso (Encyclopædia Britannica, Vol. II, p. 831)
[14] Do grego spermologos (σπερμολόγος), tagarela. Parece ter sido usado para se referir a alguém acostumado a perambular pelas ruas e mercados, apanhando sobras que caem de cargas, por conseguinte, um parasita que vive às custas dos outros, um dependente. (VINE, 850).
[15] A Carta de Paulo aos Romanos tem sido frequentemente descrita como “A Catedral da Fé Cristã” devido à sua importância no desenvolvimento da doutrina cristã da salvação no Novo Testamento, e suas alusões ao Antigo Testamento. (28)
[16] Uma técnica de retórica agressiva que se vale de um interlocutor imaginário, tendo como finalidade chocar e confrontar seus ouvintes com alguma verdade moral. (29)



Bibliografia

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2. Chiossi, Fábio Monteiro. www.uol.com.br. UOL. [Online] Folha de São Paulo, novembro 30, 2005. [Cited: maio 10, 2017.] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft3011200521.htm.
3. Demétrius, Lisandro. Dicionário de Filosofia Lisandro Demétrius. São Paulo : Clube de Autores, 2015. pp. 162-163. 978-0-415-96825-6.
4. BIBLIA. BIBLIA SAGRADA. Carta de Paulo Aos Romanos. 1. v. 26-27.
5. Vaz, Henrique C. Lima. Escritos de Filosofia IV. São Paulo : Loyola, 1999. p. 158. Vol. I. 85-15-01988-4.
6. Pohlenz, Max. Die Stoa: Geschichte einer geistgen Bewegung. Göttingen : Vandehoeck und Ruprecht, 1949, Vol. I, pp. pp. 98-106.
7. Cerroni, Umberto. II Pensiero Politico. [ed.] Newton Compton. Milão : Il sapere, 1995. p. 123. 978-887-98-3971-6.
8. Russel, Bertrand. A History of Western Philosophy. 2nd. New York : Routledge, 2004. pp. 253, 264. 9780415325059.
9. Sellars, John. Stoicism (Ancient Philosophies). Califórnia : University of California Press, 2006. p. 32. 978-0-415-96825-6.
10. Cabral, João Francisco P. Os Estoicos. Brasil Escola. [Online] [Cited: Maio 08, 2017.] http://brasilescola.uol.com.br/filosofia/os-estoicos.htm.
11. Deissmann, Adolf Paul. A study in Social and religious History. Londres : Wipf & Stock Pub, 2004. p. 36. 978-1592444717.
12. Tognini, Eneas. O Período Interbíblico. Sao Paulo : Hagnos, 2009. pp. 80 - 92. 978-85-7742-050-6.
13. Murphy-o'connor, Jerome. Paulo de Tarso - História de um Apóstolo. São Paulo : Edições Loyola, 2004. p. 27.
14. Holzer, Joseph. Paulo de Tarso. [ed.] Quadrante. [trans.] Maria Henriques Osswald. 2nd. São Paulo : s.n., 2008. p. 17. 9-788-574-65123-1.
15. Autores, Vários. Lexicon - Dicionário Teológico Enciclopédico. [book auth.] G. Bov. Estoicismo. São Paulo : Paulus, 2004.
16. BULTMANN, Rudolf. Novo Testamento e a Mitologia. São Leopoldo : Sinodal.
17. Puech, Aimé. História da Literatura Grega Cristã. Paulo de Tarso. Paris : s.n., 1928, Vol. I, p. 178ss.
18. Foucault, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro : Rio de Janeiro, 1998/2003. pp. 127-163.
19. Brehier, Emile. Études de Philosophie Antique. Paris : PUF, 1955. p. 50ss.
20. Platão. As Leis de Platão. [trans.] Edson Bini. Vol. VIII, 841 c -e, pp. 342 - 343.
21. Cláudia A. Teixeira, José Luís Brandão, Nuno Simões Rodrigues. História Augusta. [trad.] José L.Luís Brandão, Nuno Simões Rodrigues Cláudia A. Teixeira. Coimbra : Universidade de Coimbra, 2010. p. 145. Vol. 1. 978-989-8281-88-3.
22. Assmann, Selvino José. Estoicismo e Helenizaçãon do Cristianismo. [book auth.] Umberto Cerroni. Pensiero Politico. Milão : Revistas de Ciências Humanas, 1995, p. 123.
23. Britannica, Encyclopædia. Encyclopædia Britannica. New York : Encyclopædia Britannica Company, 1910. p. 831. Vol. II.
24. Infopédia. www.infopedia.pt. [Online] Porto Editora, 2003. [Cited: maio 13, 2017.] https://www.infopedia.pt/$apatia.
25. Pospielovsky, Dimitry V. A History of Marxist-Leninist Atheism and Soviet Anti-Religious Policies. New York : St Martin's Press, 1987. pp. 9-10. Vol. I. 0-333-42326-7.
26. Vine, W.E. Dicionário Vine - O Significado Exegético e Expositivo ds Palavras do Antigo e do Novo Testamento. Rio de Janeiro : CPAD, 2002. p. 850. 85-263-0495-X.
27. Abaurre, Maria Luiza. Português: contexto, interlocução e sentido. s.l. : Moderna, 2008. 978-85-16-06105-0.
28. MacDonald, William. Comentário Bíblico Popular, Introdução à Carta aos Romanos. São Paulo : Mundo Cristão, 2008. p. 413. 978-85-7325-538-6.
29. Aquino, João Paulo Thomaz de. 1 Coríntios 6.12-20 e o Estilo Diatríbico. Fides Reformata. [Online] 2010. [Cited: 06 17, 2017.] http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/1Corintios_EstiloDiatribico.pdf.

8 comentários:

  1. ÓTIMO TEXTO,EXCELENTE EXPLICAÇÃO UM VERDADEIRO TESOURO.

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  2. Embora válida a tentativa de elucidar o tema, o texto está carregado de arrogância e psudo ciência, insta relembrar que essa interpretação do autor não passa de mera opinião, havendo muitas outras divergentes desta que também baseadas em fontes se adequam e contextualizam com a ideia de Paulo embasar se no estoicismo. Fica evidente que o autor desconhece de princípios elementais fundantes da fé de Paulo e seus mestres Jesus e Gamaliel,essa deficiência de consciência situacional o impede de compreender o horizonte de eventos que Paulo sintetiza. Por óbvio o espaço aqui não permitirá a esplanacao destes, mas em suma o que se pode dizer a priori é que Paulo sim, praticava e ensinava conceitos estoicos ,não era estóico em essência, mas que no estoicismo haviam princípios e conceitos intrinsicamente cristãos que se coadunam. Como exemplo tem se que no episódio do embate de Paulo com os filósofos, o único ponto de estranheza estava pautado na pessoa de Deus, Jesus e a ressurreição dos mortos, ponto clarificado no diálogo em pauta.

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    1. Ou isto ou de fato o estoicismo se entrelaça com alguns pontos dos ensinamentos do cristianismo ou hebraico, visto que paulo não foi o único nem o primeiro a semilar enssinamentos idênticos ao estoicismo e não seria estranho imaginar Paulo absorvendo aprendizado estoico uma vez que ele ja dizia: Examinai tudo e retem o que for bom. Um sabio nunca concordará 100% com algo ou alguem que o conheça perfeitamente mas poderá absorver o que for util.

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    2. Prezado, bom dia! Bom, a despeito das adjetivações baratas e gratuitas, em nenhum momento o colega respondeu qualquer das minhas colocações. Não obstante, aparentemente, parece haver por parte do prezado leitor algum problema relacionado a alfabetização funcional. Leio o Título: Era Paulo um estoico? O texto visa responder a essa pergunta e não se haviam ou não elementos linguística ou culturalmente "emprestados" ou mesmo"similares" à cultura e filosofia grega. Sugiro ao amigo, desenvolver melhor embasamento e preparo intelectual antes de tentar adentrar no debate público.

      Forte abraço.

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  3. A as cartas entre Sêneca e Saulo?
    Olha a semelhança:
    Romanos 2:7,10 e 12.
    7 - A vida eterna aos que, com perseverança em fazer bem, procuram a glória, honra e incorrupção. / Sêneca - Quem não tem moral, não tem direitos;
    10 - Glória, porém, e honra e paz a qualquer que pratica o bem; primeiramente ao judeu e também ao grego. / Sêneca - A sorte respeita os valentes e oprime os covardes.
    12 – Porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados.
    Sêneca: Se vives de acordo com as leis da natureza, nunca serás pobre; se vives de acordo com as opiniões alheias, nunca serás rico.
    sem citar os outros estoicos...

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    1. Me preocupa bastante quando vejo um "filósofo" de internet que nunca leu sequer uma obra de Sêneca, fazer comparações textuais forçando uma similaridade exegética de um grupo de cartas reconhecidas pela academia teológica e histórica como apócrifas, escritas mais de dois séculos após a morte do próprio filósofo grego com o texto mais bem consolidado (tanto na quantidade de cópias disponíveis, como pela qualidade das cópias) do mundo Antigo: O texto bíblico.

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